Cultura

Nem sempre as crianças foram crianças

Papel das crianças mudou ao longo dos séculos

Um vendedor de jornais (1910), foto de Lewis Wickes Hine - Imagem: Divulgação
Um vendedor de jornais (1910), foto de Lewis Wickes Hine - Imagem: Divulgação
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 12/11/2024, às 12h51


Olho as crianças à minha volta; são sete, com idade entre dois e oito anos. As mais velhas insistem para que eu preste atenção no jogo que escolhemos – um exercício de memória e tempo que me martiriza e, via de regra, me faz perder.

Os menores estão envolvidos com seus brinquedos, e muitas vezes disputam de forma não muito cordial a posse de brinquedos do priminho ou da irmãzinha. Um deles e depois mais um caminham tropegamente em direção ao gato sonolento, que sofre as carícias arrebatadas da menorzinha. O cenário é de tumulto generalizado, com o som de risadas, gritos e miados.

Nesse momento, as mães chegam com o lanche da tarde. E a festa é geral.

Volto a olhar para todos naquela balbúrdia que traduz de certa forma o ‘ser criança’ nos dias de hoje. E, em um instantâneo reverso, lembro-me das imagens de Hine, que retratam uma infância bem diferente, com crianças marcadas pelo trabalho e responsabilidades que, hoje, dificilmente associaríamos à infância.

Lewis Wickes Hine

Lewis Wickes Hine, fotógrafo e sociólogo americano do início do século XX, foi fundamental para despertar a atenção sobre as duras condições de trabalho infantil nos Estados Unidos.

Nesse período, o processo de industrialização estava em pleno funcionamento em todo o país, e, lutando contra a miséria, muitas famílias dependiam do trabalho infantil para sobreviver. Muitas crianças tinham cinco ou seis anos e iam para minas de carvão, fábricas de tecido, ou vendiam jornais nas ruas. As condições eram insalubres, e a jornada de trabalho exaustiva chegava a 12 horas diárias.

Apesar do sofrimento dessas crianças, o trabalho infantil era uma prática comum, e havia poucas leis para a regulamentação ou a proteção dessas criaturas que muitas vezes passavam frio, fome e dormiam ao relento.

Hine enxergava a fotografia como uma ferramenta poderosa para a mudança social, e seu trabalho fotográfico foi decisivo para expor e combater a exploração infantil, mostrando a vulnerabilidade dessas crianças.

Um olhar no tempo

A noção de infância como uma fase cheia de singularidades não esteve sempre presente em nossa sociedade. Na verdade, não havia as distinções que hoje consideramos naturais.

O papel das crianças mudou ao longo dos séculos, havendo períodos em que elas eram vistas mais como pequenos trabalhadores ou adultos em formação do que como seres em desenvolvimento e aprendizado – um conceito relativamente recente.

Essa percepção, diversa em diferentes épocas e sociedades, influenciou como as crianças eram tratadas e representadas nas artes. Sua expressão é um reflexo direto de como cada época entendia essa fase da vida — ou, em alguns casos, de como a ignorava.

Uma breve trajetória da representação infantil na arte

Antiguidade Clássica

No Egito, as crianças eram representadas nos hieróglifos e pinturas de forma estilizada, com proporções que não estavam de acordo com as características da fase infantil. Privilegiava-se o vínculo familiar e o status social.

O Sol e a Família Real de Amarna, por volta de 1353 e 1336 a.C.

Idade Média – Sem a concepção de infância como fase distinta, as crianças eram mostradas como pequenos adultos em contextos religiosos.

A Virgem e o Menino, de Duccio di Buoninsegna (1311)

Renascimento – A infância começa a ser valorizada como fase singular, com interesse em suas características psicológicas e físicas, evidenciando o humanismo. As figuras caracterizam-se pela pureza e proximidade com o divino. Há um cuidado nos detalhes das expressões faciais e corporais buscando representar a essência e a individualidade do ser humano.

Madona e o Menino com São João Batista", de Rafael (1510 e 1511).

Idade Moderna – Com o Iluminismo, a infância é vista como período formativo, explorado pelo Romantismo e Realismo.

No século XX, a psicologia reforça a importância do desenvolvimento emocional infantil.

Artistas como Picasso e Chagall interpretaram a infância como fase de liberdade e fantasia, explorando formas lúdicas e imaginativas.

O menino e o pássaro, de Picasso (1901)

A infância no olhar contemporâneo – A imagem da infância na arte contemporânea tem muitas faces. Alguns artistas mostram uma visão de inocência e nostalgia, enquanto outros retratam crianças em contextos críticos, como a exploração, a vulnerabilidade, a violência e até a sexualização e o consumismo.

Uma reflexão final

Ao longo dos séculos, a visão sobre a infância evoluiu e se transformou, revelando uma trajetória de desafios, redescobertas e valorização.

Hoje, ao olharmos para trás, percebemos que proteger e cultivar a infância é um imperativo de uma sociedade que se preocupa com seu futuro. A criança que habita em nós nos relembra a importância de uma infância plena, onde o brincar, o aprender e o imaginar coexistem.

Que a memória de tempos difíceis, como os retratados por Lewis Wickes Hine, nos inspire a garantir que cada criança, em cada tempo e lugar, tenha a liberdade de ser apenas criança.