Cultura

“Deusas”, mas nem tanto

Como a arte e a cultura pop moldaram a percepção do feminino

Lakshmi é uma divindade do hinduísmo, esposa do deus Vishnu, o sustentador do universo na religião hindu - Imagem: Divulgação

Marlene Polito Publicado em 21/01/2025, às 13h13

Ao longo da história, as mulheres foram comparadas a divindades, seja pela capacidade de gerar vida, pelos atributos de sedução, sabedoria ou força.

Porém, esse olhar que as coloca num pedestal de “deusas” sempre veio carregado de contradições. Em muitas culturas, a veneração do feminino coexistiu com regras que restringiam a liberdade das mulheres, submetendo-as a papéis secundários. Na arte, elas foram musas e santas, ícones de pureza ou pecado. Nas HQs e na cultura pop, despontaram heroínas poderosas, mas muitas vezes objetificadas.

Hoje, discute-se cada vez mais o lugar das mulheres, recusando moldes estreitos e celebrando suas múltiplas facetas. Ser “deusa” não implica perfeição inatingível: pode expressar um potencial criativo e transformador que coexiste com as imperfeições humanas. É nesse equilíbrio que reside a riqueza do feminino — nem tanto divino, mas igualmente admirável. 

As mitologias antigas e a concepção do feminino

As mitologias antigas oferecem um rico material para entender como o feminino foi concebido.

Na Grécia, Atena representava sabedoria e estratégia, enquanto Ártemis simbolizava independência e caça. Já na mitologia egípcia, Ísis era exaltada como a grande mãe e protetora, embora sua história estivesse atrelada à de Osíris.

Em outras culturas, como a hindu, Lakshmi representa prosperidade, e nas tradições afro-brasileiras, Iemanjá está associada à fertilidade e à maternidade. 

Iemanjá no Candomblé e Umbanda é associada à fertilidade, à maternidade e à proteção

Contraditoriamente, essas deusas não escapavam dos valores patriarcais: Atena nasceu da cabeça de Zeus, reforçando o poder masculino, e Ísis, apesar de sua força, precisava reunir os pedaços de Osíris para “restaurá-lo”, mantendo sua narrativa ligada à figura do marido.

O caminho das representações artísticas

A arte projetou tais visões em quadros, esculturas e monumentos, refletindo muitas vezes um olhar masculino idealizador.

Da Virgem Maria na Idade Média à Vênus renascentista de Botticelli, a mulher aparecia como figura quase sagrada. No Barroco e no Romantismo, a simbologia de pureza e tentação persistia.

O Nascimento de Vênus, de Sandro Botticelli – a mulher como musa inspiradora.

Só com a arte moderna e contemporânea — por meio de criadoras como Frida Kahlo, Tarsila do Amaral e Louise Bourgeois — é que se intensificaram as interpretações do feminino sob uma ótica mais íntima e realista, fugindo da musa idealizada para retratar a complexidade da alma e do corpo.

No universo das histórias em quadrinhos, heroínas como a Mulher-Maravilha surgiram para inspirar, mas também foram sexualizadas ou relegadas a papéis secundários. 

Hoje, percebe-se maior abertura para roteiristas e ilustradoras mulheres, conferindo profundidade a personagens como Capitã Marvel e Tempestade, que assumem protagonismo efetivo em narrativas antes dominadas por homens.

“Deusas” muito humanas 

Algumas mulheres foram idolatradas em seu tempo, mas revelaram traços de profunda humanidade. Cleópatra (69 a.C. – 30 a.C.), por exemplo, era tida como estrategista e sedutora, porém vivia sob imensa pressão política e terminou em provável suicídio.  
Princesa Diana (1961 – 1997) foi chamada de “princesa do povo”, mas enfrentou bulimia, depressão e conflitos na família real, morrendo de forma trágica.

Lady Diana Spencer, princesa de Gales

Já Marilyn Monroe (1926 – 1962), símbolo de Hollywood, teve uma infância turbulenta, viveu relacionamentos difíceis e morreu em circunstâncias que escancararam sua vulnerabilidade. 
Esses casos mostram que o pedestal de “deusa” pode ocultar dores, ansiedades e surtos de desequilíbrio emocional. Ser reverenciada não protegeu essas figuras de tensões insuportáveis nem as impediu de cometer erros ou sucumbir às pressões.

Ser ou não ser “deusa” 

A admiração pelo feminino não deve se converter em fantasia limitadora. O poder criativo, a inteligência e a sensibilidade das mulheres não são dons celestiais que exigem perfeição absoluta. Pelo contrário, reconhecer que esse poder coexiste com incertezas e falhas torna a figura feminina mais próxima e genuinamente transformadora.

Ser ou não ser deusa passa, assim, a ser menos importante do que exercer a liberdade de escrever a própria história, redefinindo constantemente o que é ser mulher. 

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