Obra icônica de nossa época, O Grito de Edvard Munch ocupa um lugar de destaque no Museu Munch, em Oslo, Noruega
por Marlene Polito
Publicado em 22/10/2024, às 13h18
Ariano Suassuna explica a arte citando Goethe: “Um pintor que pintasse um cachorro igual aos cachorros, não teria feito um quadro, teria feito apenas um cachorro a mais”.
Três obras, cada uma à sua maneira, subvertem a representação tradicional e exploram o potencial desestabilizador da arte na forma como percebemos a realidade e o cotidiano.
ARCIMBOLDO
Vertumnus - Imperador Rodolfo II, G. Arcimboldo
Encarar a obra de Arcimboldo, Vertumnus (1590-1591), é uma experiência ao mesmo tempo surpreendente e inquietante. O quadro desafia as normas, pois vai além do que tradicionalmente se esperaria de um retrato renascentista. Acostumada às magistrais naturezas-mortas comuns na pintura flamenga, com suas frutas, flores e objetos exóticos, surpreendo-me com a figura que vejo.
Parte de um de seus principais trabalhos, As Quatro Estações, Vertumnus subverte o conceito tradicional da figura humana ao retratar Rodolfo II como o deus romano das metamorfoses, cujas origens remontam à antiga cultura etrusca. Vertumnus, na mitologia romana, era o guardião dos jardins e pomares, simbolizando as mudanças na natureza e na vida. Arcimboldo utiliza essa figura alegórica para recriar o imperador como uma fusão de flores, frutos e vegetais, numa composição ao mesmo tempo lúdica e profundamente simbólica.
A obra não se limita a ser uma excentricidade pictórica; é uma declaração visual sobre o equilíbrio entre a natureza e a harmonia do reinado de Rodolfo II. O uso magistral de elementos naturais para formar uma figura humana intriga o espectador e desafia a percepção.
Um artista à frente de seu tempo
Por muito tempo, a obra de Arcimboldo foi ignorada pelos historiadores, que a consideravam "estranha" por romper com os padrões convencionais de arte. Contudo, essa ousadia que transcende a representação comum a torna uma precursora de movimentos como o surrealismo, que surgiriam séculos depois. Artistas como Salvador Dalí e René Magritte encontraram inspiração nas composições inusitadas e na manipulação criativa da realidade presente em sua obra.
Hoje, a influência de Arcimboldo é visível na moda, na publicidade e na arte digital. Designers e artistas contemporâneos continuam a explorar sua originalidade. Marcas como a Moschino, por exemplo, incorporaram a estética arcimboldiana em coleções de vestuário, utilizando rostos formados por frutas e flores para criar peças que evocam o estilo do pintor italiano, demonstrando como sua obra ultrapassa o tempo e ressoa até os dias atuais.
EDVARD MUNCH
O Grito, Edvard Munch
Obra icônica de nossa época, O Grito de Edvard Munch ocupa um lugar de destaque no Museu Munch, em Oslo, Noruega.
O Grito não apenas rompe com a tradição pictórica convencional, mas também provoca uma reação visceral no espectador, ao retratar uma emoção extrema em um cenário despojado de formas perfeitas. A figura central, andrógina e solitária, parece gritar em desespero diante de uma paisagem surreal, em meio a cores fortes e vibrantes que evocam a intensidade do pânico. O ambiente distorcido e as formas contorcidas não apenas expressam a ansiedade humana, mas dão contornos concretos à crise existencial – uma sensação de terror iminente que transcende o tempo.
Na era digital, O Grito se transformou em um ícone da angústia e do desespero, com emojis e memes inspirados na obra disseminando sua influência cultural. A imagem é amplamente utilizada para expressar visualmente emoções intensas, como surpresa ou pânico, frequentemente com toques de ironia e sátira. A obra vai além, portanto, do papel convencional de uma pintura para se tornar um símbolo da cultura pop e das tensões existenciais contemporâneas.
Campbells’ Soup Can, Andy Warhol
Como pode um objeto tão banal, como uma lata de sopa, ser considerado arte? Esse foi exatamente o objetivo de Andy Warhol ao criar Campbells’ Soup Can em 1960: desafiar as expectativas do que se espera de uma obra de arte, elevando um objeto comum ao status de ícone cultural.
Ao atribuir uma ultrassignificação a um elemento mundano, Warhol criticava a cultura de massa e o consumismo, destacando a repetição e a padronização que caracterizam a sociedade moderna. Ao banalizar e, simultaneamente, enaltecer um objeto cotidiano, Warhol nos força a reavaliar a linha entre o que é arte e o que é produto de consumo.
Hoje, Campbells’ Soup Can permanece relevante, sendo uma referência central em discussões sobre o papel da arte na sociedade de consumo. Mais do que uma obra de arte, a lata de sopa de Warhol convida à reflexão crítica sobre a relação entre arte, cultura e mercado, mantendo viva a discussão sobre as fronteiras entre o elevado e o banal.
Uma última consideração
O alinhamento dessas três obras é provocativo, pois nos convida a enxergar além da superfície e a entender como a arte pode romper com o convencional, desafiando nossas expectativas. Cada uma delas, à sua maneira, transcende a simples estética ao introduzir elementos de ruptura e provocação que desestabilizam o espectador.
Arcimboldo, Munch e Warhol, com suas obras insólitas e subversivas, mostram que a arte não se limita a agradar, mas nos confronta com novas formas de perceber o mundo e questionar a realidade. Elas não são apenas surpreendentes ou desestabilizadoras; elas nos levam a refletir profundamente sobre percepção, significado e a própria experiência estética, transformando a arte em um veículo para a transformação do pensamento.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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