Como a construção da paisagem reflete nossas memórias e emoções, segundo Drummond
por Marlene Polito
Publicado em 25/02/2025, às 11h17
Paisagem
Em um de seus poemas mais intrigantes, Paisagem como se faz, Carlos Drummond de Andrade nos propõe um enigma:
Esta paisagem? Não existe. [...]
Por enquanto o ver não vê; o ver recolhe
fibrilhas de caminho, de horizonte,
e nem percebe que as recolhe
para um dia tecer tapeçarias
que são fotografias
de impercebida terra visitada. [...]
A paisagem vai ser.
O poema sugere que a paisagem não é um cenário imutável, mas uma construção do olhar do observador, que recolhe fragmentos da realidade para compor uma tapeçaria única de percepções e sentimentos.
A voz de Van Gogh na Noite Estrelada
A obra “Noite Estrelada”de Vincent Van Gogh é um exemplo significativo dessa ideia. Por meio de pinceladas intensas e cores vibrantes, o artista transforma o céu noturno em um cenário pulsante, onde redemoinhos e contrastes não reproduzem fielmente a realidade, mas revelam a emoção que o ambiente desperta. O céu, que ocupa grande parte da composição, não é mais mero pano de fundo e se torna protagonista, refletindo uma subjetividade que deixa transparecer a proposta de Drummond de que o “ver” é um ato criativo. Cada curva e matiz no quadro capta o dinamismo de uma paisagem em constante movimento, onde o ordinário se transfigura em um universo de significados.
Outros olhares na representação da paisagem
Essa visão transformadora da paisagem não se restringe à obra de Van Gogh. Outros artistas também exploraram a ideia de que o ambiente é moldado pelo olhar do criador.
Claude Monet e a transitoriedade de ser – Por meio de sua sensibilidade impressionista, Monet registrou as mudanças sutis da luz e do clima, evidenciando a efemeridade do instante. Suas paisagens, muitas vezes imersas em neblinas e reflexos, traduzem a passagem do tempo e a mutabilidade do cenário natural.
Lírios e Galhos de Salgueiro (1915), de Monet
J. M. W. Turner e o embate das forças naturais –Em “The Bell Rock Lighthouse” (1819), Turner apresenta um cenário marítimo dramático. O contraste entre o farol, que representa a fragilidade e a esperança humana, e o mar tempestuoso, que sugere a imprevisibilidade da natureza, cria uma composição dinâmica e emotiva. Essa pintura destaca a capacidade de Turner de transformar uma cena comum em uma experiência sensorial única, onde a luz e a cor não apenas registram a realidade, mas a reinventam, convidando o espectador a refletir sobre a relação entre o homem e seu ambiente.
The Bell Rock Lighthouse(1819), de J. M. W. Turne
Ansel Adams e o olhar além da objetividade – Na era atual, o olhar do fotógrafo também desempenha papel fundamental na construção da paisagem. Um bom exemplo é o de Ansel Adams em sua obra, “Moonrise, Hernandez, Mexico”. Por meio de enquadramentos e escolhas estéticas, mesmo uma imagem considerada “objetiva” pode revelar camadas emocionais e narrativas pessoais, reafirmando que o ato de ver (e de escolher o que ver) torna-se um processo criativo, sempre carregado de subjetividade.
Essa perspectiva se alinha à ideia de que a paisagem “vai ser” a partir do olhar, tornando cada registro único e revelador de uma nova dimensão do real.
Moonrise, Hernandez, New Mexico (1941), de Ansel Adams
Nossas “paisagens”
A análise da “Noite Estrelada”, de Van Gogh, em diálogo com as obras de Monet, Turner e a sensibilidade da fotografia contemporânea de Adams, evidencia que a nossa percepção da paisagem não é um dado imutável, mas um processo contínuo de construção. Assim como Drummond propõe, a imagem se desdobra em múltiplas dimensões. O olhar – seja o de um pintor, fotógrafo ou mesmo o nosso próprio – tem o poder de transformar o comum em algo extraordinário, revelando histórias e emoções.
Essa dinâmica, certamente, se aplica à forma como nós, seres humanos, criamos sentido em nossas vidas. Assim como o artista compõe sua tela, nós selecionamos e construímos nossas memórias, compondo “paisagens” particulares que guardam detalhes emocionais, muitas vezes sutis e fugidios. Cada lembrança, com suas cores, nuances e até os pequenos aspectos que podem nos escapar, integra uma tapeçaria única, feita da soma dos momentos vividos. Essas imagens internas, revelam uma dimensão essencial da nossa existência, onde o ver e o sentir se entrelaçam para dar forma ao que somos.
Em última análise, tanto a paisagem externa quanto a interior se constituem por esse constante ato de criação. Com esse dinamismo, podemos transformar o cenário à nossa volta e também a nossa própria história, tornando cada instante em uma obra de arte singular.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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