Entenda a relação entre arte e poder, desde as civilizações antigas até a contemporaneidade
por Marlene Polito
Publicado em 15/04/2025, às 12h38
A arte sempre acompanhou a trajetória humana, mas nem sempre teve o mesmo valor para a fé, o poder e o espírito humano. Entre tumbas sagradas e galerias iluminadas, entre templos e museus virtuais, a criação artística atravessou séculos carregando as marcas das sociedades que a gestaram. Da eternidade silenciosa dos anônimos às luzes das celebridades, a história da arte é também a história da mudança de valores: o que foi devoção, já foi vaidade; o que foi eternidade, já foi efemeridade. Como a arte, e quem a cria, mudaram tanto — e o que isso nos revela sobre nós mesmos?
A arte como elo entre o sagrado e o poder
Desde as civilizações da Antiguidade, a arte foi instrumento de conexão com o sagrado e o poder. Entre babilônios, egípcios e persas, criar era um gesto de eternização: palácios, templos, tumbas repletas de imagens destinadas à perpetuação de uma ordem divina. O valor da obra estava na função, não na identidade do autor. O artista era, sobretudo, um anônimo a serviço da transcendência.
Busto de Nefertiti. A arte como expressão da beleza eterna e da espiritualidade no Egito Antigo. Imagem: Reprodução
Da Grécia à Roma, a técnica, a beleza e a propaganda
Na Grécia Antiga, o fazer artístico era compreendido sob o conceito de téchne — um saber técnico e intelectual. O escultor ou arquiteto era reconhecido por sua habilidade refinada, mas não exaltado como criador individual. Ainda assim, nomes como Fídias, mestre das esculturas do Partenon, atravessaram o tempo como exemplos supremos da técnica a serviço da beleza ideal.
Com Roma, esse entendimento sofreu uma inflexão. Herdando o apreço pela forma grega, os romanos deslocaram o centro da arte para a funcionalidade política. A escultura preferia o realismo à idealização: rugas e expressões austeras atestavam autoridade. A arte tornou-se instrumento de propaganda do poder imperial, e raros artistasforam mencionados.
Esculturas do Partenon. A beleza idealizada sob a técnica refinada da Grécia Antiga. [reconstrução moderna]. Imagem: Reprodução
Na Idade Média, a fé, o anonimato e a força das guildas
Na Idade Média, a arte voltou-se quase exclusivamente ao serviço da fé. As grandes catedrais, como Chartres e Notre-Dame, erguiam-se como testemunhos da espiritualidade e da coesão social. A habilidade técnica era reconhecida, mas o nome do artista apagava-se para que a glória de Deus brilhasse.
Nesse contexto, surgiram as guildas: corporações de ofício que regulavam a formação de aprendizes e o reconhecimento de mestres. Ao estruturar o ensino e proteger o ofício, as guildas elevaram a arte a um padrão admirável, mas, paradoxalmente, da rigidez brotou a ânsia por liberdade que reinventaria o artista no Renascimento.
O Renascimento e a consagração do artista-criador
Com o Renascimento, uma transformação profunda ocorreu. Ao afirmar a dignidade do homem e recuperar a herança clássica, a arte libertou-se da função exclusivamente religiosa. O artista ascendeu de artesão a criador. O estudo da anatomia, da perspectiva e o apoio dos mecenas, como os Médici, permitiram que nomes como Leonardo da Vinci e Michelangelo emergissem não apenas como executores de obras, mas como consciências originais e influentes.
A modernidade e a ascensão do self
A modernidade aprofundaria ainda mais essa virada. Com o romantismo, a arte tornou-se expressão do mundo interior. O artista passou a ser visto como um espírito singular, movido por emoções intensas e visões únicas. Essa valorização do self foi alimentada pelas correntes filosóficas de Kant, Schopenhauer e Nietzsche, pela literatura romântica e pelos abalos sociais da Revolução Francesa e da industrialização. O impressionismo dissolveu as formas em luz e cor. O expressionismo expôs as emoções. O surrealismo mergulhou nos sonhos. A arte, agora, traduzia uma experiência íntima e intransferível.
A contemporaneidade e a arte do instante
Na contemporaneidade, a explosão tecnológica e a aceleração das comunicações mudaram novamente o cenário. A arte passou a disputar o instante: a atenção fugidia do público fragmentado por redes e estímulos incessantes. Performances, instalações imersivas, obras digitais e NFTs surgem como tentativas de capturar o presente efêmero. Luz, som, inteligência artificial e realidade aumentada transformam-se em novas linguagens artísticas voltadas para a experiência imediata.
Ainda assim, algo permanece.
A arte, desde as primeiras inscrições nas cavernas até as manifestações mais passageiras da era digital, continua a narrar nossa história, ora celebrando, ora questionando o que somos.
Se o artista anônimo dos templos antigos buscava eternizar o divino, e o gênio do Renascimento buscava imortalizar o humano, hoje talvez o criador contemporâneo busque apenas ser ouvido no tumulto das vozes.
Criar é sempre um gesto de esperança: de que algo da nossa existência sobreviva. Ainda que apenas por um instante.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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