Fotografia, desde seu início, é narrativa visual instigante
Marlene Polito Publicado em 29/10/2024, às 11h59
Um flagrante pessoal
A foto de meu pai, em sua impecável pose aos 3 anos de idade, me vem às mãos. É encantadora! Com sua bata branca toda bordada, aparece de nariz empinado, empertigado, cabelos compridos, muito comum à época, e se apoia em uma mesinha de linhas retas e sóbria.
O cenário atrás, fixo e muito provavelmente pintado à mão, dá um toque cenográfico com a intenção de situar a criança em um lugar idealizado, um toque possível de sofisticação.
A fotografia em branco e preto, comum nas décadas de 1920 e 1930, deixa ver tanto o estilo visual quanto os avanços de uma época em que os estúdios de fotografia começavam a se adaptar às inúmeras transformações tecnológicas, recebendo as influências do movimento art déco.
Olho emocionada a figura de meu pai nesse cenário, já tão resoluto em seus primeiros anos de vida, e me sensibilizo. A fotografia me conta histórias sem palavras.
Segurando o tempo nas mãos
A fotografia, desde seu início, é narrativa visual instigante. Espelho de nossas próprias emoções, memórias e percepções do mundo, permite que nos lembremos de momentos particulares da nossa história de vida e da vida que partilhamos com outros.
Seu apelo reside na sua capacidade de ser uma janela aberta para o que somos, sentimos e buscamos. Transcende, por isso, o seu tempo, desperta sentimentos profundos, expõe-nos transformações, conecta-nos com outras experiências humanas e nos faz lembrar de que não estamos sozinhos nesse mundo.
Uma simples foto dos Beatles atravessando as faixas de pedestre, para ilustrar a capa do disco Abbey Road, pode nos contar histórias que vão além da própria fotografia: como eram os veículos da época, estacionados ao fundo; as roupas utilizadas por eles, a tranquilidade de um instante sem movimento. E assim, um simples flagrante, que se tornou imortal por tudo o que viria a representar na música, nos remete a inúmeras narrativas que a imagem evoca.
Nos dias atuais, sofremos o impacto do excesso de imagens, uma ideia que tem sido objeto de análise de inúmeros estudos e pesquisas.
Nicholas Carr, em seu livro “The Shadows: What the Internet is Doing to our Brains” (As sombras: O que a internet está fazendo com nosso cérebro) afirma que a grande quantidade de estímulos visuais – incluindo imagens, muitas vezes sensacionalistas – e de informações rápidas impactam nossa capacidade de concentração e interferem profundamente na forma como processamos as mensagens. Como decorrência natural, há a diminuição de nossa capacidade de discernimento e engajamento crítico.
Susan Sontag, em “Diante da dor dos outros” traz, da mesma forma, um novo olhar sobre a questão. Explora como a exposição constante de cenas de violência, sofrimento e agressão pode nos levar a uma espécie de dessensibilização em que nos tornamos indiferentes à dor do outro. Nosso cérebro, sofrendo o impacto de cenas chocantes de forma constante, cria mecanismos de defesa para a nossa resposta emocional à superexposição. Naturalizamos a dor, a tragédia, a condição de miséria e desigualdade, o que pode nos levar à indiferença, à falta de empatia e conexão humana.
Esses pensadores, assim, nos põem diante de um dilema: seria esse ‘um admirável mundo novo” em que a profundidade de conhecimento, a empatia e a conexão com o outro estariam irremediavelmente comprometidas?
Muito além de uma simples imagem, uma narrativa visual do mundo
Como vimos, as fotografias têm uma qualidade particular: elas nos contam histórias a respeito de quem somos. Mesmo em tempos de redes sociais e plataformas digitais, com o fenômeno das ‘selfies’, a fotografia continua a ser uma forma de expressão e autodefinição.
Não é simplesmente o registro de um tempo congelado; é também lugar de memória que atualiza emoções, traz de volta cenários e personagens que poderiam se dissolver em vagas lembranças com o passar dos anos.
Em nossa sociedade, essa força narrativa continua a ter papel importante, apesar do poder avassalador das mudanças tecnológicas e do aumento de produção de imagens. Os trabalhos fotográficos de grande valor estético e profundidade passam a ser, então, instrumentos essenciais para análise, mobilização e crítica social . São, por isso, fundamentais para uma compreensão mais empática do mundo em que vivemos e das complexidades da condição humana.
Migrant Mother , de Dorothea Lange
Em ‘Migrant Mother’ (1936), vemos Florence Owens Thompson, que, durante a Grande Depressão, representa a luta de milhões de famílias americanas. Com expressão de resignação e força, seus filhos ao lado demonstram a desesperança de uma época.
Afghan Girl, de Steve McCurry
A foto (1984) de Sharbat Gula, uma refugiada afegã com olhos penetrantes, tornou-se um símbolo de beleza e resistência humana, sensibilizando o mundo para o sofrimento dos refugiados.
Tank Man, autor desconhecido
Essa imagem de 1989, constrói uma rede impactante de significados: vermos a fragilidade de um homem solitário na Praça da Paz Celestial, em Pequim, enfrentando a força maciça do poder estatal. Imagem forte de coragem individual, tornou-se símbolo de enfrentamento à opressão e busca pela liberdade.
Serra Pelada, de Sebastião Salgado
A série fotográfica Serra Pelada retrata a vida de milhares de garimpeiros trabalhando em condições sub-humanas. Há montanhas de lama, exaustão, precariedade de vida. As fotos em preto e branco deixam a nu o contraste entre a vontade de enriquecer e a desumanização das condições de trabalho.
A fotografia é, portanto, o flagrante de um instante que captura a imagem única. E será sempre única e singular por aquilo que representa, evoca e comunica, eternizando o eixo fugaz do aqui e agora, imortalizando uma fração da realidade.
A foto de meu pai, simples e singela, lembra-me de que, por trás de cada imagem, há histórias profundas, prontas para serem redescobertas. Em um mundo saturado de imagens, talvez ainda precisemos dessas pausas, dessas lembranças que nos conectam com quem somos.