Seja com câmara ou algoritmo, é essa experiência íntima entre obra e espectador que mantém a arte viva
por Marlene Polito
Publicado em 25/03/2025, às 11h11
A arte sempre foi cercada por uma certa sacralidade. O artista, muitas vezes, é visto como alguém dotado de um dom quase divino, um sopro criativo que transcende o comum. A genialidade, a inspiração repentina, o traço intuitivo — tudo isso constrói o imaginário que consagra o criador como figura quase mítica.
Mas e se, por trás de algumas das obras mais admiradas da história da pintura, houvesse não apenas talento, mas também... tecnologia? E se a genialidade tivesse, sim, uma lente auxiliar?
Foi o que propuseram, no início dos anos 2000, o artista britânico David Hockney e o físico Charles Falco. Em um estudo que sacudiu os alicerces da história da arte, eles sugeriram que diversos mestres da pintura renascentista e barroca teriam utilizado instrumentos ópticos, como a câmara escura, para projetar imagens sobre a tela e, a partir delas, traçar seus quadros com precisão.
A hipótese se apoiava em evidências visuais: efeitos de foco e desfoque, iluminação dramática, detalhes excessivamente realistas. Artistas como Caravaggio, Vermeer, Van Eyck e Ingres foram mencionados. A descoberta, embora não exatamente nova — Leonardo da Vinci já estudava os princípios da câmara escura no século XV — reacendeu um debate inquietante: até que ponto a arte que admiramos foi moldada por técnicas "ocultas"?
Para Hockney, o uso de dispositivos ópticos não diminui o mérito de nenhum artista. Ao contrário, revela sua inteligência ao combinar sensibilidade visual com os recursos técnicos da época. Já para outros críticos, a ideia de que um quadro clássico possa ter sido "copiado" com ajuda de lentes beira a blasfêmia.
Esquema do princípio da câmara escura
Imagem: Wikimedia Commons (Domínio Público)
A luz proveniente de um objeto (por exemplo, uma árvore) entra por um pequeno orifício (ou lente) em uma caixa escura e forma uma imagem invertida na parede oposta.
Alguns casos de precisão fotográfica
A forma como a hipótese foi apresentada reacendeu a polêmica: seria esse o segredo técnico por trás de tanta perfeição? E, nesse caso, onde ficaria a tão celebrada "mão do artista"?
Entre os exemplos mais debatidos está Vermeer. Sua obra A Leiteira é frequentemente apontada como uso possível da câmara escura.
A Leiteira (c. 1658-1660), Vermeer
A pintura é um clássico exemplo da luz natural lateral característica do artista — ideal para levantar a hipótese do uso óptico. A textura do pão, da cerâmica e da parede revela um detalhamento quase fotográfico. A mulher concentrada na ação simples de servir leite transmite silêncio e presença — como se o instante tivesse sido capturado por uma lente.
Outro exemplo é A Vocação de São Mateus, de Caravaggio, que transforma a luz em personagem.
A Vocação de São Mateus (1599-1600), Caravaggio
Um feixe cortante invade a cena lateralmente, separando trevas e revelação com intensidade quase teatral. Os rostos e gestos suspensos parecem congelados num instante de alta tensão. A composição rígida, o foco seletivo e o realismo sugerem, para muitos estudiosos, o uso de espelhos ou até de uma forma primitiva de câmara escura. Ainda que não haja provas documentais, a luz técnica e a precisão reforçam a hipótese.
Arte x Técnica – uma reflexão necessária
A arte sempre foi atravessada pela técnica. Pincéis, compassos, espelhos, estiletes: instrumentos que ampliam a expressão do artista. A câmara escura, nesse contexto, é mais uma ferramenta. O que separa o ‘truque’ da arte talvez não esteja no meio utilizado, mas no uso que se faz dele.
Hoje, a discussão assume novas camadas. Se no século XVII a câmara escura causava espanto, o que dizer das ferramentas atuais? A própria fotografia, antes vista com desconfiança, é hoje reconhecida como expressão artística plena. Artistas contemporâneos usam inteligência artificial, impressoras 3D, softwares de modelagem e manipulação digital em alta resolução.
E, ainda assim, a pergunta se repete: onde está a autoria? O que é criação? O que é arte?
Talvez a resposta não esteja em condenar ou absolver as técnicas, mas em observar o olhar de quem as utiliza, a ideia que sustenta a obra. A arte não está na lente, mas no modo como ela é usada. Assim como a câmara escura possibilitava uma nova relação entre luz e imagem, hoje as ferramentas digitais propõem outras formas de ver e representar.
No fim das contas, a pergunta que deve ser feita não é apenas "como foi feito?", mas "isso me toca? me provoca? me transforma?". Pois, seja com câmara ou algoritmo, é essa experiência íntima entre obra e espectador que mantém a arte viva.
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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