Cultura

A grande onda do verão traz histórias além dos raios de sol

Chega com sua luz avassaladora, como na obra de Van Gogh

Campo de trigo com ciprestes, de Vincent Van Gogh (1889 - Imagem: Divulgação
Campo de trigo com ciprestes, de Vincent Van Gogh (1889 - Imagem: Divulgação
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 17/12/2024, às 12h28


O verão no Brasil começa oficialmente no dia 21 de dezembro e vai até 20 de março, seguindo o calendário astronômico. É a época mais quente e iluminada do ano. Chega com sua luz avassaladora, como na obra de Van Gogh, preenchendo as ruas de vida e, paradoxalmente, convidando a alma a uma reflexão silenciosa.

Verão e uma forma de explicar os ciclos da vida

Esse período de intensidades e transformações nos conduz aos ciclos da vida e das estações, que há séculos são desvendados pelo mito grego de Perséfone. Mais do que uma simples narrativa mitológica, a história de Perséfone atravessa os tempos como uma representação das forças naturais e emocionais que moldam a existência humana.

Perséfone era filha de Deméter, deusa da agricultura e da fertilidade, e juntas viviam felizes, rodeadas pelos campos floridos. Um dia, Hades, deus do submundo, apaixonou-se por Perséfone e a raptou, levando-a para seu reino escuro. A dor de sua mãe fez com que a terra murchasse, mergulhando o mundo em um inverno eterno. Preocupado com a destruição, Zeus interveio e propôs um acordo: Perséfone passaria metade do ano com Hades e a outra metade com sua mãe. Quando Perséfone retorna à superfície, Deméter, radiante, faz as flores brotarem e a vida renascer, marcando a primavera e o verão. Quando ela desce ao submundo, Deméter, tomada pela tristeza, deixa a terra murchar, dando lugar ao outono e ao inverno.

Assim como o mito de Perséfone, o verão simboliza apogeus e transições. É o ápice da luz e da vida, mas também carrega em si o prenúncio da mudança inevitável. Ao mesmo tempo que celebra a plenitude, ele nos lembra da fragilidade e da impermanência de tudo.

A Grande Onda de Kanagawa: Enfrentando os Desafios

A grande onda, xilografia de Katsushika Hokusai (1830 ou 1831)

Essa dualidade — o ímpeto da energia e o convite à introspecção — encontra eco na força retratada em A Grande Onda de Katsushika Hokusai. A obra captura um momento em que a natureza revela sua grandeza implacável, com a onda gigantesca ameaçando pequenos barcos à deriva. Assim como o verão, a onda é avassaladora, mas também efêmera. Em um instante ínfimo, ela encarna a tensão entre movimento e quietude, caos e harmonia.
O verão também carrega esses extremos: é tempo de energia vibrante, mas também de momentos de contemplação e silêncio.

Ninfeias e a serenidade na impermanência

Ninfeias, de Claude Monet (1906)

Enquanto Hokusai traduz a força da natureza em movimento, Claude Monet explora sua serenidade na série de pinturas Ninfeias ou Nenúfares. Monet buscava muito mais do que a simples representação de um lago coberto de flores. Suas intenções eram profundamente ligadas à atmosfera, ao jogo de luz e à experiência emocional que a obra poderia despertar, trazendo não apenas uma representação artística da natureza, mas também uma expressão de sua própria busca pela beleza e pela paz interior.
As Ninfeias capturam um momento em que a impermanência se revela, em um instante fugidio de uma luz que nunca se repetirá. Tudo está em constante movimento; há, porém, uma quietude que instiga à reflexão e à contemplação.
A obra torna-se, por isso, uma verdadeira metáfora das emoções humanas: o verão vem com seus extremos — alegria vibrante e momentos de melancolia que a luz intensa pode revelar.

O Olhar para o Próximo e o Familiar

Nighthawks, de Edward Hopper (1942)

Por fim, não podemos deixar de lado o contraste entre a agitação externa e a solidão interior que o verão pode trazer. As ruas cheias, repletas de passos apressados e vozes animadas, podem conviver com um silêncio introspectivo, como capturado nas obras de Edward Hopper.

Suas telas, como Nighthawks, revelam a solidão em meio ao movimento urbano, uma sensação que muitos experimentam no auge do verão: a aparente contradição entre a efervescência externa e o espaço vazio que pode habitar em cada um de nós.

Escolhas e Recomeços

O mito de Perséfone é um convite para aceitarmos os ciclos, enfrentarmos as ondas e encontrarmos beleza tanto na luz quanto na sombra. Assim como ela retorna à superfície para trazer a primavera, também somos capazes de renascer a cada desafio.
Monet, Hokusai, Van Gogh e Hopper nos mostram que o olhar é tudo: olhar para além do medo, olhar para o que nos conecta, olhar para a beleza que esquecemos de ver.