Como diz um velho ditado chinês: a gente todos os dias arruma os cabelos: por que não o coração?!
por Marlene Polito
Publicado em 16/08/2024, às 15h45
Em uma das palestras mais divertidas a que assisti, nessa série de seminários, fóruns e congressos que todos nós, estudantes ou profissionais, frequentamos, acabei conhecendo a figura nada convencional do professor Gretz.
Nesse evento, contou “causos”, filosofou, exagerou, fez as pessoas rirem. Comentava como vinha aumentando o número de pessoas que viviam insatisfeitas, desfiando lamúrias e lamentações. Você mal acabava de cumprimentar, dizia ele, e elas contra-atacavam.
Davam detalhes completos da última doença que tiveram; relatavam as mortes de entes próximos ou distantes; falavam de brigas dentro e fora de casa, de injustiças sofridas, de vizinhos que não cooperavam; e incluíam democraticamente na mesma crítica singela e virulenta o transtorno que a passagem do guarda noturno causava.
Falou de como demonstravam perplexidade diante do fato de alguém aparentar ter mais dinheiro do que realmente seria de se esperar, o espanto diante das atitudes nem sempre “corretas” de uma vizinha que por acaso era muito bonita etc. etc. etc. Olhava, então, para a plateia constituída principalmente por jovens adultos, e carregando no tom tragicômico exclamava: Amarguuuuuuuuuuura! É só amargura! Sai dessa amargura, meu amigo!
Yakudoshi, pensei. Definitivamente Yakudoshi. ... E explico.
O povo japonês é muito místico e, como em todas as culturas, há uma série de crenças que marcam a transição das diversas fases na vida do indivíduo. São crenças relativas à sorte ou azar que as pessoas podem ter em certas idades e que determinam os rituais ou cerimônias dos ritos de passagem (na infância, adolescência, juventude, maturidade ou velhice).
Assim, costumam levar seus recém-nascidos aos templos – meninos no trigésimo dia e meninas no trigésimo primeiro – para apresentá-los aos deuses e pedir a proteção das divindades que vão zelar pelo bem-estar deles.
Sete, cinco e três anos são idades marcantes celebradas desde os tempos dos samurais. As crianças participam de um grande festival, realizado no dia 15 de novembro, no outono japonês, visitando com seus trajes mais elegantes os templos religiosos para agradecer a saúde e proteção recebidas e para pedir que essas graças os acompanhem até a idade adulta. Depois da visita, para dar sorte, comemoram distribuindo doces embrulhados em papéis coloridos para toda a vizinhança.
Também há a comemoração do ano regente em que a pessoa nasceu. Segundo o horóscopo oriental, a cada ciclo de doze anos, esses aniversariantes especiais terão energias positivas que poderão ser passadas às outras pessoas durante o ano todo. A festa de aniversário deverá, por isso, ser maior que a dos outros anos, e valerá a pena ficar ao seu lado e usufruir do seu convívio.
Outra grande festa é dada aos sessenta anos, idade em que um ciclo completo de vida se fecha e um novo se inicia. Acredita-se que o aniversariante renasceu, pois voltou ao ciclo inicial de vida. E todos, familiares e amigos, devem reunir suas forças e energias para que ele possa encarar com paz e harmonia esse novo caminho que terá pela frente.
Existem, porém, as idades chamadas críticas – Yakudoshi - em que todo cuidado é pouco, pois representam momentos de mudança nas fases da vida. Para o homem ocorre aos quarenta e dois anos; para a mulher, aos 33. Período de azar, dizem os japoneses, de muito azar! Tanto é que, segundo o folclore japonês, durante a festa em sua homenagem, o aniversariante deve usar roupas do sexo oposto para enganar a má sorte. A entidade que traria o azar não poderia reconhecer o homenageado e iria embora.
Bem, crenças, superstições e amarguras à parte, não é para se ignorar o alerta. Sabemos o que toda mudança representa principalmente quando entramos de cabeça na fase adulta: movimento de desapego ao passado sem renegá-lo, ruptura com modelos mentais de acomodação, necessidade de estar aberto para novas experiências, e um medo enorme de, no processo, não ser competente, de não ser amado, e, enfim, de não ser feliz.
Acredito que, no fundo, a palestra do professor Gretz queria nos propor exatamente isso: podemos ultrapassar o que nos aflige e transformar a nossa vida. Naturalmente não há roteiros para esse percurso – ele é pessoal e intransferível, e precisa ser resolvido com a própria força de cada um.
Afinal, como diz um velho ditado chinês, só para continuar na linha oriental: A gente todos os dias arruma os cabelos: por que não o coração?!
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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