Durante séculos, ter acesso à própria imagem era um privilégio restrito
por Marlene Polito
Publicado em 26/11/2024, às 12h54
Desde os primórdios da arte, o autorretrato foi mais que uma técnica; tornou-se um manifesto visual. Grandes mestres como Rembrandt, Van Gogh e Frida Kahlo usaram suas próprias imagens para expressar mais do que o físico: registraram angústias, glórias e identidades.
Frida Kahlo, por exemplo, fez de seus autorretratos um palco para dores e lutas, como em Diego em Meus Pensamentos, onde o impacto emocional de seu relacionamento transborda para a tela.
O que eles buscavam? Talvez o mesmo que nós hoje: entender-se e ser compreendido.
Na linha do tempo
Durante séculos, ter acesso à própria imagem era um privilégio restrito. Espelhos, pinturas e retratos desenhados eram algumas das poucas formas de capturar a aparência pessoal, muitas vezes inacessíveis para a maioria. Técnicas como a pintura em camafeus, por exemplo, ofereciam um vislumbre de si mesmo, mas ainda assim eram limitadas a quem tinha recursos ou status.
Com o avanço das câmeras fotográficas, essa barreira começou a se romper. Foi no século XXI, entretanto, com a chegada dos smartphones, que tudo mudou: a selfie não só popularizou essa prática, como a colocou nas mãos de milhões de pessoas ao redor do mundo. Agora, retratar a si mesmo deixou de ser um privilégio ou uma habilidade artística para se tornar parte da vida cotidiana, um reflexo da era digital. Mas o que as selfies dizem sobre nós?
A Selfie – um espelho do presente
Na era contemporânea, as selfies são mais que simples retratos. Elas revelam uma busca por validação e pertencimento que reflete aspectos psicológicos profundos. Ao tirar uma selfie, buscamos afirmar nossa existência — seja por meio de curtidas, comentários ou compartilhamentos. Esse gesto expõe o desejo humano por aceitação, mas também pode revelar inseguranças.
Mais do que atender a necessidades imediatas, as selfies refletem uma busca por conexão, reconhecimento e significado. Dimensões emocionais, sociais e culturais se entrelaçam, revelando raízes psicológicas ligadas à identidade e à autoafirmação. Muitas vezes, o que parece ser apenas um hábito social tem sua origem em processos internos mais complexos.
Culturalmente, as selfies capturam o espírito do tempo, expondo o culto à imagem e à perfeição estética, que se tornaram forças poderosas. No entanto, elas também podem ser meios de empoderamento. Em campanhas sociais, como os movimentos de aceitação corporal e de identidade de gênero, a selfie vai além da vaidade, tornando-se um grito por inclusão e reconhecimento.
Filtros, personagens e arte
Se nas selfies buscamos o "eu ideal", os filtros ampliam essa busca, criando versões irreais de nós mesmos. Um toque na tela, e o rosto é suavizado, os traços aperfeiçoados. Às vezes, o "eu" retratado pouco se parece com quem realmente somos. Nesses casos, a selfie se aproxima de uma performance, onde criamos personagens para interagir com o mundo.
Essa ideia não passou despercebida pelas artes. Artistas contemporâneos, como Cindy Sherman, usam a estética da selfie e da criação de personas para
questionar as noções de identidade e autenticidade. Em suas obras, vemos como as imagens que criamos podem ser, ao mesmo tempo, máscaras e revelações.
Cindy Sherman e a reinvenção na arte
Cindy Sherman é considerada a artista de mil faces. Desafia o papel da mulher e sua representação na sociedade, os meios de comunicação e a própria natureza da criação de arte.
"Untitled Film Stills" (1977–1980) - Ilustra como as selfies e autorretratos podem ser usados para criar ou questionar identidades fictícias e estereotipadas.
"Centerfolds" (1981) - Sherman usa enquadramentos horizontais, semelhantes aos de revistas masculinas, para representar mulheres em
estados de vulnerabilidade emocional ou introspecção. Apesar da referência às pin-ups, as fotos subvertem a expectativa de objetificação
Trabalhos com tecnologia digital (década de 2000) - Uma conexão direta com o uso de filtros e manipulação digital nas selfies de hoje.
Uma reflexão final – Hoje como sempre?
O autorretrato, seja em telas de museus ou na tela de um celular, sempre carregou a mesma pergunta: quem somos nós? No entanto, hoje, com as selfies, surge um novo questionamento.
Nesse cruzamento entre autenticidade e ilusão, o autorretrato moderno pode deixar de ser apenas um reflexo de nós mesmos; ele se torna um espelho distorcido de nossas inquietações e aspirações.
Como, então, equilibrar quem somos e quem mostramos ao mundo?"
Marlene Theodoro Polito é doutora em artes pela UNICAMP e mestre em Comunicação pela Cásper Líbero. Integra o corpo docente nos cursos de pós-graduação em Marketing Político, Gestão Corporativa e Gestão de Comunicação e Marketing na ECA-USP. É autora das obras “A era do eu S.A.” (finalista do prêmio Jabuti) e “O enigma de Sofia”. [email protected]
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