Não foi apenas uma, mas sim duas vezes
por Reinaldo Polito
Publicado em 10/05/2024, às 15h46
O aforismo italiano “traduttore, traditore”, que significa “tradutor, traidor”, é bastante conhecido. Quer dizer que a maioria das traduções traem a intenção original do autor.
Quando li essa máxima pela primeira vez, achei que se tratava apenas de força de expressão. Até que senti na pele a ação desses “traiçoeiros”.
Tenho lugar de fala. Não foi apenas uma, mas sim duas vezes. Pelo menos que tomei ciência, pois se quem fez a versão dos meus livros para o russo, por exemplo, atravessou o sentido das minhas palavras, jamais saberei.
O tradutor parecia perfeito
Na primeira experiência, consegui me proteger logo no nascedouro. Procurei um profissional que fizesse a versão para o inglês do meu livro “Superdicas para falar bem”. Recebi a indicação de um jornalista norte-americano que escrevia para um importante jornal dos Estados Unidos e estava residindo no Brasil há muitos anos.
Pensei, perfeito! Era exatamente de quem eu precisava. Além de fazer a versão, ele poderia interpretar determinadas passagens do texto de acordo com as sutilezas da língua. Combinamos o preço e o prazo. Cumpriu tudo como combinado. Entregou até antes do tempo.
Ainda bem
Quando comecei a ler a tradução, fiquei chocado. O jornalista mexeu tanto no texto que parecia até um outro livro, diferente daquele que eu havia escrito.
Liguei para ele tentando saber o que havia ocorrido. O tradutor foi firme e direto: é assim que atuo. E não admito que alterem o meu trabalho. Ou seja, ele se dava o direito de modificar o livro que era meu, mas eu estava proibido de fazer alterações. Paguei o preço acertado e nunca mais olhei para aquela obra que ele havia produzido.
Encontrei uma profissional muito melhor, que fez uma tradução excepcional. Ainda hoje o livro “Super tips on speaking well” é muito elogiado pela forma correta como foi vertido. No fim, foi até bom que o primeiro tradutor tivesse se comportado daquela maneira.
Exemplo de defesa
Na segunda experiência, só fui descobrir depois que a obra já estava impressa. A Editora Planeta do México ficou interessada em publicar o meu livro “Assim é que se fala” para distribuir em todos os países de língua espanhola. Eles mesmos providenciaram a tradução.
Fiquei sabendo do título depois que o livro chegou às minhas mãos: “Cómo hablar para convencer”. Até achei melhor esse título espanhol.
Em um dos capítulos, falo sobre objeção e refutação. Usei como exemplo a defesa que Roberto Jefferson fez do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Collor havia sido acusado de ter envolvimento com o empresário Paulo César Farias, nos atos de corrupção. É uma peça oratória extraordinária, que explica muito bem como uma defesa deve ser realizada:
“O furor acusatório da CPI, na expectativa de fazer o terceiro turno eleitoral, cheia de ressentimentos, cheia de revanchismo, buscando punir a vitória pela minoria derrotada, rasgou os dispositivos constitucionais, desrespeitou a lei ordinária, transformou a CPI do PC no açoite contra a figura do presidente da República.”
Caiu na armadilha
Embora eu tivesse explicado na introdução que a CPI de Paulo César Farias ficara conhecida como a CPI do PC, ao ler a tradução feita para o espanhol, levei um susto. Onde estava CPI do PC, a tradutora não hesitou em dizer que PC significava “Partido Comunista”:
“El furor acusatorio de la CPI, em la expectativa de hacer el tercer turno electoral, lleno de resentimientos, lleno de revanchismo, buscando castigar la victoria por la minoría derrotada, rasgó los dispositivos constitucionales, faltó al respeto a la ley ordinaria, transformó la CPI del PC (Partido Comunista) em el azote contra la figura del presidente de la república.”
Mandei mensagem para a editora informando o equívoco e na edição seguinte fizeram a correção. Tive a sorte de a publicação ter sido em língua espanhola, pois se fosse em outra com a qual não tenho familiaridade, essa “traição” ficaria eternizada.
Lá e cá
Até mesmo nos livros que publico no Brasil fico atento. Vez ou outra aparece um revisor tentando “criar” em cima do texto e contrariando totalmente a intenção que tive ao escrever.
Quem escreve precisa ter em conta que não poderá transferir a responsabilidade. Se acatar as modificações sugeridas, elas passarão a ser suas.
Por isso, toda a atenção é pouca. Como vimos, pude vivenciar com experiências pessoais que é verdade – “Traduttore, traditore”.
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