Cultura

Quem decide o que somos?

Até que ponto somos criadores ou apenas obras esculpidas pelas expectativas alheias?

Desde que nascemos, ficamos expostos à influência de fatores externos: família, valores culturais, relações amorosas, relações sociais, mídia e, por fim, as expectativas dos outros - Imagem: Divulgação/ Salvador Dalí, Fundación Gala-Salvador Dalí, VEGAP, Barcelona, 2011
Desde que nascemos, ficamos expostos à influência de fatores externos: família, valores culturais, relações amorosas, relações sociais, mídia e, por fim, as expectativas dos outros - Imagem: Divulgação/ Salvador Dalí, Fundación Gala-Salvador Dalí, VEGAP, Barcelona, 2011
Marlene Polito

por Marlene Polito

Publicado em 24/09/2024, às 11h44


Quem decide o que somos? A imagem que moldamos de nós mesmos ou a visão que os outros projetam sobre nós? Em um mundo onde a aparência e a palavra competem pelo domínio da nossa identidade, até que ponto somos criadores ou apenas obras esculpidas pelas expectativas alheias?

Na história do conhecimento humano, uma das máximas mais conhecidas – e cultuadas – é a frase associada a Sócrates “Conhece-te a ti mesmo”, ponto central de sua filosofia e inegavelmente um caminho para o conhecimento e a sabedoria.

Considero, entretanto, esse um dos maiores dilemas da existência humana, possivelmente a maior dificuldade que enfrentamos. Somos seres racionais – mas nem tanto. Temos capacidade crítica – até certo ponto. Encaramos verdades desconfortáveis – mas nem sempre. Reconhecemos nossas limitações – mas em um limite raso, bem pequeno.

O exercício em direção ao autoconhecimento torna-se ainda mais desafiador pelo medo do que podemos encontrar: fraquezas, arrependimentos, culpas, desejos

não revelados, uma falha de caráter ou outra. Essas sombras, que preferimos ignorar, nos causam desconforto e dor, pois nos obrigam a encarar o que somos de fato – e o que podemos vir a ser.

Desde que nascemos, ficamos expostos à influência de fatores externos: família, valores culturais, relações amorosas, relações sociais, mídia e, por fim, as expectativas dos outros. Somos, assim, lapidados, transformados, moldados. Essas influências frequentemente obscurecem nossa percepção de quem somos de fato, gerando um confronto entre nossa verdadeira identidade e a imagem projetada pelos outros,

A obra “Galatea das Esferas”, de Dalí, expressa de forma magistral essa intersecção de elementos. Sua figura, composta por esferas fragmentadas, mas ainda coesa, reflete a dualidade presente em cada um de nós — o "eu" individual confrontado pelas forças externas que nos moldam.

Quem é Galatea, afinal?

Para entender essa dualidade, podemos começar pela versão do mito clássico de Pigmalião, narrado por Ovídio.

Pigmalião é um jovem escultor que via tantos defeitos nas mulheres que passou a detestá-las. Sendo muito talentoso, usa sua arte para esculpir uma belíssima estátua de marfim representando uma mulher tão perfeita que parecia real. Apaixona-se por ela; trata-a como se estivesse viva.

Durante o festival em honra a Afrodite, pede à deusa que lhe permita encontrar alguém semelhante à sua estátua. Afrodite ouve-o e faz mais do que isso: dá vida e amor à obra. Pigmalião casa-se com ela e lhe dá o nome de Galatea, sua criação perfeita.

Em 1932, Bernard Shaw revisita o mito em sua obra “Pygmalion”, depois adaptada para o musical “My Fair Lady”.

Shaw utiliza o nome Pigmalião, mas transita da lenda para questões sociais e psicológicas. A escultura, neste caso, não é uma obra física de mármore, mas uma transformação cultural e linguística, moldada pela educação e pelo comportamento.

Higgins é um foneticista de grande renome em sua época; também como Pigmalião sua atitude com relação às mulheres é problemática – cínica e depreciativa. E da mesma forma que Pigmalião consegue esculpir de um pedaço de marfim uma bela imagem de mulher e lhe dá o sopro de uma nova vida, Higgins toma uma menina rude, suja, inculta, das zonas mais pobres da cidade, e a transforma numa requintada obra de arte.

Aqui, contudo, as semelhanças acabam e Eliza – a Galatea de Shaw – demonstra no final ter alma própria e um espírito indomável que luta com todas as suas forças contra seu criador pela sua independência.

O caleidoscópio mítico nas relações contemporâneas

A simbologia do mito de Pigmalião permanece extremamente relevante em nossas relações contemporâneas.

A inevitabilidade de tentar impor controle e a idealização geram no indivíduo impactos de natureza emocional e psicológica: enfraquecem a autoestima, abalam a percepção que tem de si mesmo, prejudicam suas relações pessoais e sociais.

Essa tensão entre controle e independência frequentemente leva à frustração ou à ruptura.

Pigmalião, o dilema de Sócrates e a necessidade humana de realização

A busca pela realização, tanto social quanto individual, exige equilíbrio. Por um lado, a convivência em sociedade implica interação e adaptação. Por outro, a realização individual requer o enfrentamento do dilema socrático — reconhecer quem somos de verdade, mesmo que isso signifique romper com padrões idealizados ou socialmente impostos.

A correlação entre Pigmalião e Sócrates se traduz, assim, de forma clara: o primeiro reflete o desejo de controle e perfeição externa; o segundo revela a necessidade de um enfrentamento interno. Para nos realizarmos como seres completos, precisamos integrar essas duas dimensões: na busca por relações mais autênticas, fundamentadas no respeito mútuo e na aceitação das singularidades de cada um.

Somente ao unirmos essas duas forças é que poderemos encerrar o ciclo de controle e submissão, e encontrar nossa verdadeira realização como seres humanos livres e autênticos.